Datas extremas de atividade

A primeira misericórdia foi fundada na cidade de Lisboa, em agosto de 1498, por iniciativa da rainha D. Leonor, viúva do rei D. João II, tornando-se o modelo para as instituições subsequentes1Como refere o primeiro compromisso da Irmandade e Confraria da Misericórdia de Lisboa, ed. PMM3, p. 385-393. Veja-se igualmente Paiva, 2009, p. 400.. Desde essa data e até 1910, comprova-se a existência de 436 misericórdias2Paiva, 2009, p. 405..

Esta tipologia de instituições de assistência mantém-se até à atualidade3Confira-se a lista das 378 Misericórdias atualmente existentes em Portugal em https://www.ump.pt/Home/misericordias/misericordias-em-portugal/ (consul. 2.12.2020)..

Documentos normativos (principais)

  • Compromisso da Confraria da Misericórdia, datado de 15164Existem duas versões deste documento, uma original e uma outra, considerada uma contrafação da primeira, feita em 1543 (Compromisso da Confraria, 1516, com edição em PMM3, p. 410-423). Sobre o documento  vejam-se por último Manoel e Antão, 2017, p. 84, 101-111.;
  • Carta régia do Infante D. Henrique, datada de 28 de junho de 1564, pela qual  atribui a tutela do Hospital de Todos os Santos à Misericórdia de Lisboa5Ed. PMM4, p. 210-211.;
  • Regimento do Juiz dos Feitos das Misericórdia e Hospital de Todos-os-Santos de 18 de dezembro de 15656Ed. PMM4, p. 98-99, posteriormente integrado nas Ordenações Filipinas (OF, liv. 1, tit. 16, §5).;
  • Alvará régio, datado de 15 de Março de 1614, no qual se determina os procedimentos de registo documental dos legados pios não cumpridos de testamento e instituição de capelas e morgados concedidos à Misericórdia  e Hospital de Todos os Santos7Ed. PMM5, p. 191-193.;
  • Alvará régio, datado de 27 de Agosto de 1614, para que os provedores das comarcas fiscalizassem secretamente o cumprimento de encargos pios por parte das Misericórdias8Ed. Silva, Collecção Chronologica, 1854-1859, vol. 2, p. 101-102.;
  • Alvará régio, datado de 13 de Janeiro de 1615, pelo qual os provedores das comarcas averiguem, secretamente, a posse de hospitais anexos às misericórdias e se estas cumpriam os encargos pios adscritos aos primeiros9Ed. PMM5, p. 196..

Competências

Gerais

A Misericórdia de Lisboa, assim como as suas congéneres subsequentes, tinham como função principal a prática da caridade através do «cumprimento das catorze obras de misericórdia»18Sá, 2017, p. 124. Para a sua enumeração, vejam-se as p. 139, 143-145 dessa mesma obra..

Matéria vincular

As misericórdias recebiam legados da parte dos fiéis, dos quais poderiam fazer parte a administração de vínculos instituídos pelos legatários nas suas igrejas19Sá, 1998, p. 57; Abreu, 1999, p. 135; Pardal, 2015, p. 61.. De igual modo, a administração de capelas poderia reverter para as Misericórdias, fosse por decisão régia – como no caso da Misericórdia de Lisboa –, fosse por determinação do respetivo instrumento de fundação, geralmente prevista após se terem esgotado as hipóteses de sucessão no seio da parentela dos instituidores20Para o caso de Lisboa, veja-se Rosa, 2012, p. 107-108, 372 e 574..

A ligação da Misericórdia de Lisboa aos bens vinculados foi reforçada pela tutela que esta instituição exerceu sobre o Hospital de Todos os Santos e sobre as capelas aí situadas ou por ele administradas, entre 1564 e 185121Ramos, 2019, p. 88.. Durante esse período, o seu provedor e os seus irmãos puderam exercer o direito de preferência do Hospital sobre a administração de qualquer capela de provimento régio na cidade e termo de Lisboa22Ed. PMM4, p. 206-207. Não se conhece a data precisa dessa concessão, uma vez que esta última é conhecida através do traslado que a oficializa, datado de 27 de junho de 1564. , um direito confirmado por D. Filipe I em 159623Carta de 13 de outubro de 1596, ed. PMM4, p. 151..

Face ao reforço na capacidade da instituição em administrar bens vinculados a partir da segunda metade do século XVI e à sua ausência nos compromissos anteriores, este assunto foi estatutariamente regulado em 1600, quando a versão desse ano do Compressimo da Irmandade (…) determinou que o provedor e os irmãos da Mesa pudessem aceitar capelas, instituições, obrigações e acordos sobre heranças de propriedades sem os eleitos pela Irmandade24Compressimo da Irmandade, 1600, §14.. A versão do Compromisso (…) de 1619 especificou que a aceitação de testamentos que instituíssem capelas e capelães para a servirem dependia da reserva de parte dos rendimentos estabelecidos pelo instituidor para as despesas da fábrica da igreja da instituição, «com conselho da junta»25Compromisso da Misericórdia, 1619, fl. 27, §28..

Orgânica da instituição e funções dos seus agentes em temática vincular

Orgânica da instituição

As misericórdias eram formadas por um provedor e por irmãos que geriam os assuntos relativos à instituição, apoiados por um pessoal subalterno que executava as atividades inerentes ao funcionamento quotidiano das mesmas34Sá, 2002, p. 28..

As funções dos seus agentes

Provedores e irmãos
O provedor e os irmãos da Misericórdia de Lisboa foram responsáveis por ativar o direito de preferência na obtenção do direito de administração das capelas de provimento régio na cidade e termo de Lisboa35De acordo com o traslado de alvará, datado de 27 de junho de 1564, ed. PMM4, p. 206-207.. O Compromisso (…) de 1619 estabeleceu que estes irmãos tinham de efetuar anualmente uma visita geral depois do Natal, incluindo-se nesta última a visita das capelas situadas nas diferentes igrejas que Lisboa que são administradas pela Misericórdia36Compromisso da Misericórdia, 1619, fl. 8v-9, §7.. Este mesmo documento determina que a aceitação de «capellas, & instituições, ou obrigações desta qualidade» tem de ser feitas pela Mesa em «junta»37Compromisso da Misericórdia, 1619, fl. 16, §13..

Uma vez que os compromissos das restantes misericórdias se baseavam, sobretudo nos primeiros tempos, no regulamento da Misericórdia de Lisboa38Sousa e Rocha, 2017, p. 2., a cláusula sobre a atribuição à Mesa da competência de aceitação de novos legados e a aferição do seu cumprimento, constou nos compromissos de muitas outras Misericórdia, como a do Porto39Sousa e Rocha, 2017, p. 11..

Juiz dos Feitos da Misericórdia e Hospital de Todos-os-Santos
O regimento do Juiz dos Feitos das Misericórdia e Hospital de Todos-os-Santos (1565) continha uma cláusula inibitória para que este oficial não tomasse contas e conhecimento dos processos e relativos às capelas da cidade de Lisboa e seu termo por este oficial, mais tarde integrada nas Ordenações Filipinas40OF, liv. 1, tit. 16, §5..

Solicitador das demandas
Este oficial devia guardar o exemplar da Misericórdia de Lisboa do livro de registo dos testamentos e instituições pias que estivessem na posse dos escrivães do Juízo das Capelas e Resíduos, mandado fazer por alvará de 15 de março de 161441Ed. PMM5, p. 191-193..

Relações com outras instituições sobre temática vincular

Estas instituições, apesar da sua constituição leiga, evidenciaram relações com a hierarquia eclesiástica. Desde logo com o Papado, a quem podiam solicitar a redução de encargos pios sob sua administração, a concessão de  indulgências e de altares privilegiados nas igrejas de várias misericórdias e a equiparação das referidas igrejas em instituições paroquiais42Paiva, 2009, p. 283-285.. No caso dos prelados, estas relações alargavam-se à concessão de espaços, de privilégios, de doações e da regulamentação do funcionamento das suas igrejas, para além da importante prerrogativa do ordinário de visitar as igrejas das Misericórdias43Paiva, 2009, p. 287-305..

No caso de Lisboa, a concessão ao Hospital de Todos os Santos dos legados pios não cumpridos levou à «partilha» de informação com o Juízo dos Resíduos e Capelas de Lisboa, de modo a que a Misericórdia pudesse controlar o que devia de receber por conta dos legados pios não cumpridos44Ed. PMM5, p. 191-193..

Os provedores das comarcas acabaram por desempenhar um papel na questão dos legados pios45Sobre a (pouca) intervenção dos provedores da comarca nas Misericórdias, ver Abreu, 1999, p. 57., ainda que não pudessem «entender» nos assuntos nas Misericórdia, como refere a Lei da Execução do Concílio Tridentino, datada de 2 de Março de 156846Ed. Lião, 1569, fl. 81-84, especificamente os fl. 82v-83; Lião, 1796, p. 279-288 e p. 283-286 para os artigos em específico; PMM4, p. 100-104 (edição dos artigos específicos a partir de Lião, 1569, mas sem referência à divisão em artigos introduzida por Duarte Nunes de Lião).. Em virtude das dificuldades demonstradas pelas Misericórdias em cumprir os encargos litúrgicos associados ao património que tutelavam, D. Filipe II determinou, por alvará de 27 de Agosto de 1614, que os provedores das comarcas levassem a cabo, em segredo, uma inquirição devassa para determinar se as Misericórdias «cumprem em tudo as instituições e legados, a que rendas d’elles estejam aplicadas, e se há d’isso algum escândalo»47Ed. Monteiro, 1879, p. 11-12, nota 7, cit. em Abreu, 2000, p. 406..